Poucas obras mexem tão fundo com o leitor quanto Frankenstein. A criação que escapa ao controle do criador, o preço da ambição científica e o terror que nasce daquilo que deveria ser belo — tudo isso continua fascinando séculos depois. E, curiosamente, cada geração encontra novas histórias que reativam esse medo antigo: o medo de criar vida e perder o domínio sobre ela.
Hoje, esse tema ressurgiu com força, seja em narrativas sobre inteligência artificial, biotecnologia, criaturas artificiais ou experimentos que foram longe demais. Por isso, para quem terminou Frankenstein com aquela mistura de inquietação e encanto, existem livros que expandem essa sensação e a conduzem para novos lugares.
A seguir, você encontra uma seleção profunda — não apenas recomendações soltas, mas uma análise do porquê essas obras conversam tão intensamente com o legado deixado por Mary Shelley.
A herança de Shelley e por que ela continua atual
O impacto de Frankenstein nunca se limitou ao horror clássico. Na verdade, Mary Shelley criou uma metáfora universal sobre o risco de ultrapassar limites éticos e a solidão que acompanha o criador de algo que não deveria existir. Por isso, livros que exploram o medo de criar vida permanecem tão poderosos.
Eles falam sobre:
- Ambição cientifica em excesso.
- O sonho de controle absoluto — e a falha inevitável.
- A responsabilidade por aquilo que criamos.
- O terror de ver algo ganhar autonomia.
- O choque entre invenção e humanidade.
Esses elementos formam o fio que liga Frankenstein a muitas narrativas contemporâneas e clássicas. E, aos poucos, percebemos que o verdadeiro medo não é a criatura — é o criador.
1. O Médico e o Monstro — Robert Louis Stevenson
Este é um dos clássicos que mais dialogam com a essência de Frankenstein. Aqui, a criação não é um ser externo. Ela nasce dentro do próprio criador. A experiência de Dr. Jekyll, ao tentar separar seu lado moral de seu lado sombrio, resulta em uma forma de vida independente: Mr. Hyde.
O terror cresce justamente porque a criatura não é um monstro estranho — ela é parte dele, e isso abre um caminho psicológico semelhante à solidão de Victor Frankenstein. A obra conversa com quem se interessa pelo horror da própria natureza humana.
**2. A Longa Viagem a Um Pequeno Planeta Hostil — Becky Chambers
(subversão leve do tema)**
Embora seja uma ficção científica mais leve, este livro traz um conceito fascinante: inteligências artificiais que desenvolvem emoções, desejos e questionamentos existenciais. E, quando a tripulação se depara com dilemas éticos envolvendo IA, surge o mesmo conflito de Shelley — o que fazer quando aquilo que criamos começa a sentir?
A obra não segue o caminho do terror, mas amplia a discussão sobre vida artificial e a responsabilidade moral do criador.
3. Do Androids Dream of Electric Sheep? — Philip K. Dick
Aqui, o medo de criar vida ganha uma forma moderna: replicantes que se aproximam demais dos humanos. O livro inspira a mesma pergunta que assombra Frankenstein: quando é que uma criação deixa de ser objeto e passa a ser alguém?
A reflexão se torna ainda mais intensa à medida que os replicantes demonstram empatia, algo que seus criadores acreditavam dominar. O resultado é um impacto emocional profundo, especialmente para quem se interessa pelas fronteiras da consciência.
**4. A Loteria — Shirley Jackson
(o medo de sistemas que criam monstros)**
Embora não seja uma história de criação literal, o conto aborda um tipo de “vida criada” coletivamente: monstros sociais. A comunidade cria um ritual que perpetua violência irracional. Aqui, o monstro é sistêmico, não individual.
Essa abordagem expande a ideia de criação de Shelley, mostrando que comunidades inteiras podem gerar horrores quando deixam tradições correrem soltas.
5. A Máquina do Tempo — H. G. Wells
Na viagem ao futuro, a humanidade se dividiu em duas espécies: Eloi e Morlocks. Essa evolução distorcida é, de certa forma, a continuação extrema de uma criação descontrolada. Ambas as espécies resultam de escolhas humanas, e ao observar as consequências, o leitor experimenta aquele desconforto familiar: criamos algo que já não controlamos.
O horror aqui é biológico, evolutivo e mais silencioso — porém igualmente perturbador.
6. Nunca me Deixes Ir — Kazuo Ishiguro
Uma forma moderna e devastadora de explorar o medo de criar vida. Ishiguro apresenta seres criados para um propósito específico, e o que perturba não é a rebelião — é a obediência. A calma da narrativa reforça um pavor sutil: o que significa criar algo destinado ao sofrimento?
É um livro que fere de maneira emocional e lembra a tragédia fundamental da criatura de Shelley: existir sem escolha.
7. Ex Machina — roteiro de Alex Garland (indicado mesmo não sendo livro)
Apesar de não ser um romance, seu roteiro é uma das histórias mais elegantes sobre a criação de vida artificial. A inteligência criada torna-se tão humana que a distinção desaparece, enquanto o criador mantém uma postura arrogante semelhante à de Victor Frankenstein.
O medo aqui é frio, calculado, tecnológico, e conversa diretamente com leitores fascinados pelo terror da autonomia.
Por que essas histórias continuam voltando?
Toda época tem seu próprio “Frankenstein”.
O século XIX temia a ciência.
O século XX temia a tecnologia.
O século XXI teme a inteligência artificial.
E, a cada medo, surge uma nova obra que personifica essa angústia. Isso acontece porque a ideia de criar vida toca em algo profundamente humano: nossa relação com poder, limite e responsabilidade.
Criar algo que pensa — ou sentir que esse algo deixou de nos obedecer — é um medo que nunca envelhece. Por isso, histórias desse tipo sempre encontram caminho até leitores que buscam emoção, reflexão e aquele desconforto que só narrativas intensas conseguem provocar.
Ler esse tipo de obra é, no fim, revisitar nosso próprio medo de sermos criadores sem sabedoria suficiente.

