O fenômeno de “marcar trechos” em livros e como isso altera a memória

Quem nunca pegou um marca-texto, lápis ou até o dedo para sublinhar uma frase que parecia dizer exatamente o que você sentia? Marcar trechos é um hábito quase instintivo entre leitores — um gesto que parece simples, mas que revela muito sobre como o cérebro funciona, como lembramos o que lemos e até como interpretamos o mundo à nossa volta.

Longe de ser apenas uma mania de leitores apaixonados, o ato de marcar trechos é um fenômeno cognitivo e emocional. Ele muda a forma como nosso cérebro registra, organiza e recupera informações. Em outras palavras: quando você destaca uma frase, está literalmente redesenhando sua memória daquela leitura.

Por que sentimos vontade de marcar trechos

Quando lemos, o cérebro processa milhares de informações — sons, imagens mentais, significados, sensações. Mas, às vezes, uma frase específica parece vibrar de um jeito diferente. Ela desperta identificação, traz clareza a algo confuso ou simplesmente soa bela demais para ser esquecida.

Esse impulso de destacar está ligado a um mecanismo chamado “resonância cognitiva” — quando uma ideia externa coincide com algo interno, criando uma sensação de reconhecimento. É como se o texto dissesse, de repente: “eu te entendo”.

Além disso, o ato físico de marcar reforça o vínculo entre o conteúdo e a emoção. O cérebro registra que aquele trecho é especial, importante, digno de ser guardado. E é aí que a mágica acontece.

O poder da atenção focada

Marcar um trecho faz com que a leitura mude de ritmo. Você desacelera, volta algumas palavras, relê, reflete. Esse processo, aparentemente simples, ativa áreas do cérebro ligadas à atenção e à consolidação da memória.

Na prática, o destaque funciona como um “ponto de ancoragem”: ele sinaliza ao cérebro que aquela informação merece espaço extra na memória de longo prazo. É por isso que, dias ou semanas depois, você ainda consegue lembrar de uma frase marcada — mesmo tendo esquecido quase todo o resto do texto.

Um estudo da Universidade de Princeton mostrou que a retenção de conteúdo aumenta significativamente quando o leitor interage fisicamente com o texto, seja escrevendo anotações, seja sublinhando passagens. A explicação é simples: marcar é um ato ativo, e o cérebro aprende melhor quando participa.

Memória visual e emocional: um dueto poderoso

Quando você destaca uma frase, não grava apenas o conteúdo — mas também o contexto emocional daquele momento. O cérebro não armazena palavras de forma isolada; ele guarda sensações, imagens e estados mentais associados à leitura.

Por isso, quando você revisita um livro cheio de trechos marcados, cada cor, cada linha sublinhada pode reativar o sentimento original. É quase como abrir uma caixa de lembranças.

Em outras palavras, marcar trechos é também uma forma de autobiografia silenciosa. Cada destaque é um registro do que te tocou, do que você acreditava, do que te fazia pensar. Com o tempo, esses traços viram uma espécie de mapa emocional da sua evolução como leitor.

O perigo de marcar demais

Apesar dos benefícios, existe um lado curioso: marcar tudo pode ser o mesmo que não marcar nada. Quando o leitor destaca excessivamente, o cérebro perde o parâmetro do que é realmente importante.

É o que alguns pesquisadores chamam de “ilusão de domínio” — a sensação de que, por ter grifado um trecho, você o compreendeu plenamente. Na prática, a compreensão profunda exige reflexão, não apenas marcação.

O segredo, portanto, está no equilíbrio: marcar menos, mas com intenção. Escolher trechos que realmente representem uma ideia central ou uma emoção forte. Assim, o cérebro associa o gesto à importância real do conteúdo.

Cores e significados: a psicologia dos marcadores

Muitos leitores usam cores diferentes para destacar diferentes tipos de trechos: amarelo para ideias centrais, azul para frases inspiradoras, rosa para emoções. Essa organização colorida não é apenas estética — ela ajuda o cérebro a criar “categorias visuais” de memória.

Estudos mostram que a cor tem um papel direto na fixação da informação. O contraste visual facilita a recuperação do conteúdo mais tarde, porque o cérebro associa cor e significado de forma simultânea.

Então, quando você lembra de um trecho e pensa “acho que estava em amarelo”, na verdade está acessando um atalho neural que combina percepção visual e linguagem.

O digital e o dilema da marcação

Com o avanço dos e-books, marcar trechos ficou ainda mais fácil. Um toque e o texto fica destacado — às vezes até compartilhado automaticamente nas redes sociais. Mas isso levanta uma questão interessante: será que marcar digitalmente tem o mesmo efeito cognitivo que marcar no papel?

Pesquisas apontam que a marcação física, feita à mão, ativa mais áreas cerebrais ligadas à memória tátil e espacial. O simples gesto de segurar o marca-texto, pressionar o papel e ver a tinta se espalhar cria uma experiência sensorial mais rica.

No entanto, o digital tem suas vantagens. Ele permite revisitar trechos marcados com rapidez, criar coleções temáticas e comparar passagens entre livros. É um novo tipo de memória — menos física, mais acessível, mas igualmente significativa.

Marcar trechos também é uma forma de conversar com o livro. Cada linha destacada é uma resposta silenciosa ao autor. É o leitor dizendo: “isso me tocou”, “eu discordo”, “preciso lembrar disso”.

Essa interação dá à leitura um caráter ativo. Você deixa de ser apenas um receptor de histórias e passa a ser um coautor da experiência. E é exatamente essa participação que faz com que a leitura se torne memorável.

O retorno aos livros marcados

Revisitar livros marcados é uma experiência curiosa. Às vezes, você lê o mesmo trecho e se pergunta por que o destacou. Outras vezes, aquele sublinhado ainda acende algo dentro de você.

Esse reencontro é um lembrete de como a leitura muda junto com quem lê. O que um dia te pareceu essencial pode hoje soar distante — e isso mostra crescimento. Nossos destaques são reflexos das versões que fomos.

A arte de marcar com propósito

No fim das contas, marcar trechos é muito mais do que decorar palavras. É um jeito de transformar leitura em lembrança. Quando feito com intenção, o simples ato de grifar vira um exercício de autoconhecimento, atenção e presença.

Cada marca é uma âncora na memória — não apenas da história que lemos, mas da pessoa que éramos naquele instante.

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