“Ensaio sobre a cegueira” é um dos romances mais marcantes da literatura contemporânea. Escrito por José Saramago e publicado em 1995, o livro imagina um cenário distópico em que uma cegueira branca se espalha como epidemia, mergulhando a sociedade no caos absoluto. Mas o que poucos sabem é que a origem dessa obra não veio de um devaneio literário qualquer — e sim de uma experiência real e profundamente perturbadora que o autor teve.
A visita que mudou tudo
Saramago estava em Madrid quando resolveu visitar o Museu Tiflológico da ONCE (Organización Nacional de Ciegos Españoles), um espaço dedicado a pessoas cegas, com exposições táteis, livros em braille e obras feitas por artistas com deficiência visual. Lá, ele entrou em contato direto com uma realidade que a maioria das pessoas ignora: a forma como o mundo “vê” quem não enxerga.
Foi ao sair do museu que ele comentou com sua esposa, Pilar del Río, algo que ficaria marcado para sempre: “E se fôssemos todos cegos?”
“Não foi a cegueira dos olhos que me interessou, foi a cegueira da razão.” – Saramago
Um mundo cego de humanidade
O livro não nomeia personagens nem lugares. Saramago quis mostrar que a história poderia acontecer em qualquer país, com qualquer povo. O foco da narrativa é a desumanização crescente que surge quando o senso de coletividade é rompido. O que a princípio parece uma crise de saúde pública, se revela como uma metáfora brutal da nossa incapacidade de ver o outro com empatia.
Nesse ponto, a inspiração real vinda da visita ao museu se transforma em algo ainda mais simbólico: não é a cegueira física que ameaça a humanidade, mas sim a moral, a ética, a solidariedade.
“Ensaio sobre a cegueira” nos obriga a confrontar nossas falhas sociais mais profundas — egoísmo, violência, indiferença — e mostra como, sem elas, talvez fôssemos menos cegos.
A simbologia do branco
Curiosamente, a cegueira descrita no livro não é escura. É branca. Uma “luz que não deixa ver nada”. Segundo o próprio autor, essa escolha foi proposital: ele queria fugir da associação direta com a escuridão e focar em algo mais perturbador — um mundo completamente iluminado, mas vazio de significado.
Essa ideia surgiu também da experiência tátil e sensorial no museu, onde Saramago percebeu que a ausência de visão não precisa significar ausência de percepção. Por isso, a cegueira branca representa algo ainda mais cruel: uma saturação de estímulos sem direção, sem entendimento.
Pilar del Río, a mulher por trás da obra
Muita gente não sabe, mas a esposa de Saramago, Pilar del Río, teve um papel central na gestação de “Ensaio sobre a cegueira”. Foi ela quem o incentivou a desenvolver a ideia após a visita ao museu, e também foi a primeira leitora crítica da obra. Ela leu os manuscritos, sugeriu cortes, discutiu ideias — e posteriormente se tornou a tradutora oficial das obras de Saramago para o espanhol.
Sem Pilar, talvez o livro não tivesse ido adiante. E isso reforça ainda mais a ideia de que “Ensaio sobre a cegueira” não é apenas fruto de genialidade solitária, mas também de parceria, afeto e visão compartilhada.
A reação do público e da crítica
Lançado em 1995, o livro foi recebido com entusiasmo, mas também com incompreensão. Algumas pessoas interpretaram a história de forma literal demais, enxergando um apocalipse físico. Outras consideraram o estilo de Saramago — com frases longas, sem aspas nos diálogos e ritmo quase oral — como um obstáculo à leitura.
Mas, com o tempo, o livro se consolidou como uma das maiores obras do século XX. Foi adaptado para o cinema em 2008, dirigido por Fernando Meirelles, e segue sendo leitura obrigatória em escolas e universidades.
Cegos somos nós
A beleza e o horror do livro estão justamente no fato de que ele não oferece respostas fáceis. Saramago não diz como devemos viver, nem prega soluções. Ele apenas mostra — com crueza e poesia — o que acontece quando deixamos de enxergar o outro como humano.
E pensar que tudo isso começou com uma simples visita a um museu. Um espaço onde os cegos são tratados com respeito e protagonismo — mas que também deixou claro para Saramago o quanto nós, os que vemos, muitas vezes não enxergamos nada.
O legado que continua atual
Três décadas após sua publicação, “Ensaio sobre a cegueira” continua assustadoramente atual. Em tempos de crise, pandemia, polarização e desinformação, a metáfora de Saramago parece mais pertinente do que nunca.
A inspiração foi real. O livro é ficção. Mas a cegueira, infelizmente, é bem verdadeira.